terça-feira, 15 de março de 2011

Juiz é 'Senhor', 'Doutor' ou 'Vossa Excelência'

Juiz é ‘Senhor’, ‘Doutor’ ou ‘Vossa Excelência’? 
Lembram do  Juiz que entrou na justiça contra o condomínio em que  mora, por causa do tratamento de "'você" dado pelo  porteiro? Pois é,  saiu a sentença. Leiam abaixo.  

Observem a bela redação, sucinta,  bem argumentada, até solidária do Juiz Alexandre Eduardo  Scisinio para com o Juiz que se queixa,  mas....
Uma verdadeira aula de direito e de português!

Processo  distribuído em 17/02/2005, na  9ª  vara cível de  Niterói - RJ
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO  DE JANEIRO - COMARCA DE NITERÓI - NONA VARA  CÍVEL

Processo n° 2005.002.003424-  4


S E N T E N Ç A

Cuidam-se  os autos de ação de obrigação de fazer manejada por  ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO  DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o  autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio  que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de  "senhor".

Disse o requerente que sofreu  danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para  dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ' Doutor,  senhor"  "Doutora, senhora", sob pena de multa diária  a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação  dos réus em dano moral não inferior a 100 salários  mínimos. (...)

DECIDO: "O  problema do fundamento de um direito apresenta-se  diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de  um direito que se tem ou de um  direito que se gostaria de ter ." (Noberto Bobbio,  in "A Era dos Direitos", Editora Campus, pg.  15).

Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo  o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas  da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que  tomou este processo.
Agiu o requerente como  jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua  conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do  conflito.

Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice,  nem esta ação pode ter conotação de incompreensível  futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho  eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio  autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o  que tanto incomoda o probo Requerente.

Está claro  que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de  autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório,  posto que é homem de notada grandeza e virtude.  Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na  pretensão deduzida.

"Doutor" não é  forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas  quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga  merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às  pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário.  Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de  "doutor", sem o ser, e fora do meio  acadêmico.


Daí a expressão  doutor honoris causa -  para a honra -, que se trata de título conferido por uma  universidade à guisa e homenagem a determinada pessoa, sem  submetê-la a exame.

Por outro lado, vale lembrar  que "professor" e "mestre" são títulos exclusivos dos que  se dedicam ao magistério, após concluído o curso de  mestrado. Embora a expressão "senhor" confira a desejada  formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até  o autor aspirar  distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando  intimidades, não existe regra legal que  imponha  obrigação ao empregado do condomínio a  ele assim se referir.

O empregado que se refere ao  autor por "você", pode estar sendo cortês, posto que  "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade,  decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou  incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe  social. O brasileiro tem tendência na variedade coloquial  relaxada, em especial a classe "semi-culta" , que sequer  se importa com isso.

Na verdade "você" é variante -  contração da alocução - do tratamento respeitoso "Vossa  Mercê". A professora de linguística Eliana Pitombo  Teixeira ensina que os textos literários que apresentam  altas freqüências do pronome "você", devem ser  classificados como formais. Em qualquer lugar desse país,  é usual as pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e  isso é tratamento formal.

Em recente pesquisa  universitária, constatou-se que o simples uso do nome da  pessoa substitui o senhor/a senhora e você quando usados  como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento  diferente. Na edição promovida por Jorge Amado "Crônica de  Viver Baiano Seiscentista", nos poemas de Gregório de  Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que  "você" é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 1999).

Urge  ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a  círculos fechados da diplomacia, clero, governo,  judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria  Presidência da República fez publicar Manual de Redação  instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação  social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso  que se diz que a alternância de "você" e "senhor"  traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país como o  Brasil de várias influências regionais.

Ao  Judiciário não compete decidir sobre a relação de  educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser  estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela  própria comunidade.

Isto posto, por estar convicto  de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre  autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o  postulante no pagamento de custas e honorários de 10%  sobre o valor da causa. P.R.I. Niterói, 2 de maio de  2005.


ALEXANDRE EDUARDO  SCISINIO
Juiz de Direito

     Não é que, neste país ainda existem juristas honrados e  cultos?

    Nem tudo está perdido...

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